quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

imaginar o mal



Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975). Pier Paolo Pasolini.

O que há de mais extraordinário - de perverso, de mau, para ser redundante - na maldade é a sua transversalidade, i.e., a capacidade de qualquer pessoa, boa ou má, em imaginá-la (em conseguir imaginá-la). Imaginar os meios, todos e mais alguns, extrema ou relativamente dolorosos, banais ou excêntricos, práticos ou requintados, de a provocar. Se quisermos - no limite, se quisermos imaginar a pior coisa que poderíamos fazer a alguém -, todos podemos imaginar as coisas que se passam em Salò mesmo antes de vermos o filme. Sem prejuízo das fontes onde Pasolini se inspirou (desde logo Sade), o filme é, ele próprio, um exercício imaginativo de maldade da parte de quem o realiza, no sentido em que, para retratar as "actividades" do concílio demoníaco de Salò, o autor teve provavelmente de imaginar o mal, i.e., imaginar cenas onde ele se expressasse o "melhor" possível, o mais horrificamente possível, assim como afinar, até à perfeição, o horror (a perfeição como atributo não exclusivo do Bem, mas também do Mal).

Por isso, utilizar os qualificativos de "inimaginável" ou "impensável" para caracterizar as cenas de Salò acaba por não fazer sentido (em última linha, é hipócrita mesmo). Aliás, tenho para mim que foi um pouco isso que o Pasolini quis dizer com este filme (sem prejuízo do foco específico sobre o fascismo) - a maldade, mesmo a mais brutal, não é, na sua dimensão prática (que não ética, claro), tão "extravagante" como os homens a querem ver. Ela pode ser banal (que não no sentido arendtiano, evitem-se confusões) e, proeza das proezas, "enjoyable". Por isso é que nós, espectadores, nos rimos das histórias contadas pelas mestres de cerimónias ou do modo como as vítimas de Saló se denunciam umas às outras como forma de evitar a sua punição. Por isso é que, no final do filme, Pasolini nos junta aos carrascos e, da janela indiscreta, nos faz ver, dos seus binóculos, um escabroso espetáculo, desse modo nos tornando cúmplices voyeuristas da matança.

Que ninguém diga que Salò não era imaginável: já o era antes do filme, sempre foi. Para o Bem e para o Mal (com maiúscula), os homens são capazes de imaginar infinitamente. Sem limites. E de pôr em prática.

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