quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

"I'm a strictly home man myself"



The Roaring Twenties (1939), Raoul Walsh.

Em The Roaring Twenties, a viagem de comboio entre Eddie Bartlett (James Cagney) e Jean (Priscilla Lane) terá o seu desenvolvimento e (anti-)clímax (o termo não é inocente, mas... já lá vamos) na cena da chegada a casa de Jean, nela residindo uma das chaves para decifrar a complexa(da?) personagem de James Cagney. Eddie, no seu habitual cavalheirismo sagaz, prontifica-se (insiste) em acompanhar Jean a casa, casa que ele já conhece dos tempos em que, regressado da guerra, havia ido visitar a mulher  afinal uma adolescente que ainda vive com a mãe   que lhe mandava cartas, desejosa de arrematar, como ela própria o diz, o seu "dream soldier". Eddie, então espantando com a mocidade de Jean, rapidamente desaparece do mapa.

Mas, agora, passados uns anos, Eddie acompanha, dizíamos, Jean, entretanto feita mulher e aspirante a cantora, a casa. Hiper confiante (a "confiança" é um punctum crucis delicado em Eddie, mas... já lá vamos, já lá vamos) e charmoso, Eddie domina todo o encontro perante uma Jean embevecida, naquele que é o único momento, ao longo de todo o filme, em que acreditamos que aquele par pode dar certo, circunstância a que, e trazendo para aqui os movimentos imprimidos pelas máquinas do tempo (ali o carro, aqui o comboio) aludidos por JMG, não será certamente alheio o movimento frontal, em direcção ao futuro (ao amor, à felicidade), do comboio, com os dois (Eddie e Jean) defronte para esse destino, prontos a alcançá-lo, prontos a abraçá-lo.
Já apeados do comboio, Eddie acompanha Jean até à porta de casa, sugerindo (insistindo), de insistência (sugestão) em insistência (sugestão), com uma certa "lata", até, a intenção de entrar com Jean em casa. Neste momento, outra coisa não passa pela cabeça do espectador: Eddie quer entrar para conseguir algo mais, designada e obviamente, levar Jean para a cama. Algo surpreendentemente (estamos a falar do cinema americanos dos anos 30 e da censura legalmente instituída que então o acobertava), Jean, perante a insistência de Eddie (quando Jean lhe sugere ficarem no alpendre, Eddie, recuando até à porta de casa, e depois de argumentar que se constipa com facilidade, diz ser um "strictly home man"), anui, sem dramas, em entrarem para dentro de casa. Suspense.

Quando Jean se prepara para tirar as chaves da carteira e abrir a porta, Eddie faz tombar, sem querer mas ruidosamente, um vaso, pedindo desculpa pelo barulho poder ter acordado a sua mãe. Aliás, a frase exacta – importa transcrevê-la pelo que de insinuante comporta – é: “we got to be careful not to disturb your mother”. Um segundo e Jean já prostrou o olhar no chão, para depois nos dizer (a nós e a Eddie) que a sua mãe passed away há um ano atrás. A seguir a isto, Eddie só lhe perguntará se vive sozinha e, a partir daí, fará conversa de circunstância, até ao momento em que Jean o convida finalmente a entrar, ao que ele recusa. Nunca passará daquela porta e, saberemos mais tarde, nunca entrará verdadeiramente na vida (no coração) de Jean. Como seriam as coisas se, naquela noite, Eddie tivesse acedido ao convite? Teria sido tudo diferente? Talvez sim, provavelmente não.

Esta recusa deixa lastro para, pelo menos, duas leituras diferentes. A primeira, mais imediata e convencional (moralista), é a que vê nessa recusa um acto de amor “puro” (por oposição ao amor carnal, se se admitir que esta oposição faz sentido, que não faz), no sentido em que, afinal, Eddie nunca teria querido levar Jean para cama: se queria entrar sabendo que a mãe de Jean estava em casa (o que impossibilitava, à partida, grandes aventuras), já não o quis (mesmo) sabendo que, afinal, Jean vivia sozinha. Acresce o moralismo que a notícia da morte da mãe de Jean, imediatamente antes das chaves rodarem na fechadura, imprime à cena, na medida em que sai beneficiada, novamente, a "pureza" de Eddie, o qual, perante a gravidade do assunto, como que se "esquece" da pulsão sexual.
A segunda leitura, eventualmente mais ousada mas nem por isso infundada, é a que, jogando com os mesmos dados (intenção de entrar sabendo que a mãe de Jean está em casa vs. desistência de o fazer sabendo que ambos estão sozinhos), vê na confiança exterior de Eddie o reflexo de uma profunda falta de confiança interior e - é aqui que queremos chegar – sexual. Durante todo o filme, não há, salvo erro, uma só cena em que Eddie beije (e só estamos a falar disto mesmo, beijar) uma mulher, que abrace uma mulher para além do mero companheirismo. Pelo contrário, Eddie, não obstante a sua inegável masculinidade e virilidade (os socos a torto e a direito, a pose de gangster), apresenta-se, de um ponto de vista relacional e objectivamente físico, perfeitamente assexuado, o que poderá mesmo levar a abrir novo capítulo nas suposições, a saber, o de uma eventual homossexualidade reprimida. Aparência que sai reforçada com o que de virginal Eddie põe em pormenores tão simbólicos como o de, durante praticamente todo o filme (até à sua "queda"), beber leite (e não álcool). Deste modo de ver, a recusa em aceder ao convite de Jean evidencia a referida falta de confiança, sobretudo sexual, em levar as coisas "até ao fim", em corresponder na hora "H"  como não pensar, então, no soldado, como Eddie, impotente de Fiesta, de Hemingway?

Aliás, a relação de Eddie com Panama (mulher que dele diz, mais do que uma vez, ser do "seu tipo", com o que o filme se abalança no tema da luta de classes), mulher com quem acaba por "ficar", não é nunca de tipo amoroso, muito menos sexual; pelo contrário, é sempre uma "amiga", uma "comparsa", que Eddie vê – que nos dá a ver – em Panama. A bem dizer, mesmo no amor que vota a Jean, Eddie nunca parece apaixonado no sentido carnal que ao amor está irremediavelmente associado; diversamente, Eddie parece, sim, apaixonado por uma imagem, por uma ideia de amor, burguês com certeza: uma casa, uma mulher "doméstica" (e domesticada) e os filhos brincando no front yard. Voltando ao início e ao comboio, é precisamente com este ideário que Eddie sonha alto, em conversa com Jean, na viagem, quando lhe diz supor que ela goste de fazer bolos nas horas vagas, ficar no jardim ou costurar. É esta ideia de amor que, afinal, gente "do tipo" de Jean (e de Lloyd, com quem casará) vive (ou fabrica, como imagens/ilusões que se fabricam…), mas de que Eddie ou Panama estão arredados (em nova intromissão da questão de classe).


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